domingo, 30 de janeiro de 2011

(ainda Munch)

Em modo de piloto automático, já indissociável do tráfego dos fins de tarde nas grandes cidades, dei por mim a sacudir do volante desbotado uns cabelos casposos que gritavam por um tratamento S.O.S. Já seria bom organizar-me e conseguir lavar a cabeça de dois em dois dias, pensei. No leitor de cassetes, a música de sempre, um medley dos anos 80, comentado por spots publicitários de artigos ou serviços já inexistentes, oferta de um ex-namorado que na altura o gravara directamente dum programa duma rádio local. Faltavam 20 minutos para a consulta de rotina, gravemente ameaçada pelo pára-arranca exagerado de um dia chuvoso. Por que será que lhe chamam “molha tolos”, pensei, abandonando de imediato a banalidade da pergunta.

19:49. Foda-se que nunca mais lá chego a horas. Mais vale desistir e adiar a conversa repetida do oncologista sobre o que devo e não devo comer, e que devia mesmo-mesmo deixar de fumar. Sempre arranjo de voltar a sair mais cedo para a próxima consulta, já que vou inventar esta ter sido cancelada por uma daquelas viagens para formação profissional. Daquelas formações de cinco dias que ocorrem na Sardenha e que permitem aos médicos levarem um ou dois acompanhantes. A Dª Conceição arranja-me a declaração na boa e, afinal, ninguém na empresa vai ousar discutir da sua veracidade com uma gaja escanzelada, pálida e semi careca.

Meti-me numa ruela para fugir ao trânsito e estacionei no primeiro buraco que encontrei. Por cinco ou seis minutos não vou pagar parquímetro, sou honesta mas não otária. Deixei o guarda-chuva a pingar no carro e enfiei na cabeça o panamá cinza impermeável. Adivinhava um tombo na calçada escorregadia, pelo que fui caminhando no asfalto da estrada, sujeitando-me a uma buzinadela de quando em quando. Parei cinco segundos em frente a uma pastelaria. Não tinha mesas vagas. Como não me apetecia exibir a minha solidão em pé, prossegui. A fome também não era muita, já se sabe. Mais à frente, embrenhada na tentativa de recuperação da programação das 4ª-feiras na 2, dei por mim a parar em frente a uma montra de um armazém com artigos exclusivamente oriundos da China. Boa, agora chamam-lhes “Supermercado”; foram promovidos. As lojas dos 300, que tanto por nós fizeram, eram só lojas. Estes? Não senhor, são supermercados… Pousada no chão, estava uma réplica plastificada dum quadro do Munch. Eu que nem gostava muito das artes em geral, fiquei a conhecer uns quantos pintores, cujos nomes legendavam as imagens com que os bloggers faziam acompanhar os seus relatos autobiográficos das sessões de quimio ou radio: a Frida Khalo aparecia muito, mas não tanto como o Munch ou mesmo a Rego. Nunca tinha reparado que era a figura feminina que estava na ponta daquela pontezinha; tinha sempre assumido que era o outro vulto que estava prestes a embarcar, deixando-a a ela só naquela praia rochosa. Não sei porquê, mas nunca pensara na hipótese de ser ela a regressar ao lar, ou até mesmo a fugir dele. Tinha-a sempre imaginado como sendo a abandonada. Do gajo que estava em primeiro plano, nunca tivera dúvidas: era um daqueles tarados que perseguiam as mulheres por quem se julgavam perdidamente apaixonados. E tinha definitivamente uma fenda no palato, que o tornava ainda mais tímido e com a mania da perseguição, cada vez que alguém demorava o olhar na sua face por mais que uns breves momentos. Agachei-me para ler o preço na etiqueta amarelecida pelo sol. Só conseguia ler “9,90”, mas faltava lá um dígito, meio escondido por uma outra tela. Custaria 19,90? Porra, 29,90 era estupidamente caro para uma impressão numa tela daquele tamanho, que não ficava bem a acompanhar móvel nenhum, de tão pequena que era. Mas pensando melhor, 20 euros também não era propriamente barato. Com 20 euros não se faz nada, é certo, mas sempre dá para duas diárias e umas bicas.

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