terça-feira, 29 de maio de 2012

Padrices


O burburinho que se ouvia na Brasileira, não chegando a ensurdecedor, mostrava bem a situação daquele momento. Sábado de manhã, manhã solarenga e amena em final de Inverno. As pessoas, cansadas da humidade crónica em que a cidade vive na maior parte do ano, agarraram a oportunidade de se vingarem do cinzento depressivo. Uma maralha considerável passeava na rua. Outra, no interior do estabelecimento, aproveitava a luminosa inundação que se dava, naquela hora, em amena cavaqueira. Cristiano também lá estava, sozinho a uma mesa de canto e janela, daquelas onde, em posição privilegiada, se pode ver a sala toda e ainda olhar para fora. “Sábados de manhã destes são santificados.. E deviam ser mais frequentes.” - pensava ele, enquanto bebia o seu café.
Não fosse o dito ruído, que ao fim de algum tempo passa para plano posterior mas que não obstante, abafa eficazmente a ambiência sonora do exterior, Cristiano ter-se-ia apercebido da marcha síncopada e confiante de um par de botas de salto alto e respectiva dona, que se acercavam da entrada da Brasileira.
A reacção, para além de generalizada, foi súbita e imediata, à medida que a mulher entrava pela porta; o decaimento logarítmico da banda sonora e trinta cabeças em rotação, até fecharem no alvo. Era uma figura diferente e deliciosamente espampanante. Uma morena alta e esguia, de cabelo escorrido negro, feições bem definidas, como que esculpidas em noite inspirada, com sinais muito leves de alguma maturidade. Olhos verdes, brilhantes, em conformidade de cor com uma saia travada acima do joelho, que mostrava o necessário e sugeria o não-evidente. O casaco de peles claras era outro adereço que trazia e que fazia convergir atenções, marcando-lhe o estatuto.
A morena olhou em redor, procurando um lugar. Encontrou Cristiano. Sorriu e avançou sob o escrutínio da massa humana circundante. Cristiano sentiu logo a reacção visceral que, desde que tomou aquela decisão entrar para o seminário há dois anos atrás, se vinha esforçando por controlar.. A morena chegou ao pé de Cristiano e afagou-lhe o cabelo.
“Cristiano, como estás ? Que surpresa ver-te.. Já passou tanto tempo.” Cristiano apanhou-lhe a mão. Olhou em redor. As pessoas em volta, fechavam agora o alvo naquela situação que os continha aos dois. Rodavam a cabeça para o seu grupo de mesa, estremeciam o lábios em jeito de coscuvilhice. O colarinho branco de Cristiano não combinava muito com a pantera, pensavam eles.
“..Gi..Gina..! Que surpresa...”. Cristiano não estava nada à espera deste encontro. Ao encontrar o olhar de Gina, um conjunto massivo de recordações encadeadas assolou-lhe a mente e enrubesceu-lhe a face. Essas recordações vívidas, de prazeres proibidos que entrelaçavam o percurso de ambos, eram o combustível para a fogueira onde Cristiano ardia muitas noites, no seminário. Gina fora, anos atrás, a mulher que muito contribuíra para aquilo que ele hoje era. Um jovem e devoto religioso que procurava acima de tudo a paz interior. Cristiano tinha trabalhado, durante um verão, numa das mansões do sopé do Bom Jesus, desempenhando entre outras a função de poolboy. A casa, um dos muitos pertences imobiliários de um negociante de Lisboa, estava a ser usada por Gina, sua mulher e uma amiga dela, Clotilde, naquilo seriam umas férias da capital e do seu casamento enfadonho. Cristiano tinha sido sugerido pelo pároco de Tenões ao zeloso marido, descrevendo-o por carta, como um jovem muito reservado, trabalhador e pouco dado às coisas mundanas. Apesar da pouca idade e timidez natural de Cristiano, foi possivelmente o aborrecimento e a devassa das duas mulheres que fez surgir um envolvimento entre eles. Inicialmente, foi Gina que se apercebeu da peculiaridade do carácter de Cristiano, que parecia não se mostrar afectado com a presença constante das duas belas mulheres em trajes menores à beira da piscina. “Será gay?”, comentava ela com Clotilde. Esta aparente resistência incial apenas acirrou a curiosidade e os apetites das duas tias. A verdade é que Cristiano, que sempre fora dado à espiritualidade, estava a começar um curto e intenso acordar para os prazeres da carne. O que aconteceu foi um crescendo gradual, que partiu de pequenas insinuações maliciosas das tias, até aquilo a que se pode considerar de deboche total.
Cristiano, já se esquecera que estava na Brasileira, tendo percorrido em segundos, memórias que não seriam apropriadas para aquele contexto. Aquela que fora a sua tutora do hedonismo, estava já sentada à sua frente. “Cristiano, estou a ver que voltaste às tuas velhas aspirações”, disse Gina, pondo-lhe a mão no colarinho para o ajeitar. “Semprei pensei que nunca mais voltasses a esse caminho.. Com o jeito tens para a perdição.”. Cristiano, estava a sentir uma inquietação tremenda, sentindo dificuldades em verbalizar. Tentou controlar-se, agarrando-se ao pensamento de que a tentação é para ser controlada e que isto era um teste à sua vocação.
- Já não nos vemos há muito tempo, Gina.- disse Cristiano. A última vez tinha sido naquele verão. - Como é que estão a correr as coisas na capital?.
- Fervilhantes e aborrecidas, como sempre. Lembrei-me de vir cá cima para respirar este ar do Minho. Sempre me senti tão revigorada por ele. -, a disse-lhe isto colocando-lhe a mão na perna. - É curioso, encontrar- te aqui. Esta semana lembrei-me de ti. Depois de cá chegar, fui assaltada por recordações, enquanto percorria as divisões da casa. - Cristiano, já não estava em auto-controlo. Sentiu-se a sucumbir à situação, dada a resposta obtinha do seu corpo. O seu corpo pedia-lhe o
de Gina, como se se tratasse de dose para um ressacado. Colocou a cabeça entre as mãos. - Não.. -, pensou alto. - Então, Cristiano ?.. -, perguntou Gina com um sorriso paternalista,
colocando-lhe a mão no ombro. - Não posso.. com isto. Desculpa, Gina. - levantou-se, e saiu apressadamente. Não pagou o café. Deparou-se com a rua. A situação era desconexa, descontextualizada. As pessoas circulavam em várias direcções, tendencialmente para a Avenida Central. Deixou-se levar pelo movimento. Viu a igreija dos Congregados. Ganhou um rumo. Sentiu a paz a regressar.

© 2012 Francisco Bernardo

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011


Porque te amo. Porque ainda te amo. Porque te sonhei muitas vezes antes de te conhecer. Porque ao teu lado os últimos 25 anos passaram num sopro de vento. Porque anseio pelos próximos 25 anos. Porque foste conhecendo os meus defeitos e não fugiste. Porque fazes de mim um homem melhor. Porque és muito melhor do que que eu alguma vez fui. Porque és a minha família. Porque o quero gritar aos quatros ventos. Porque vai haver um dia em que não vão ser precisos porquês. Porque te amo. Porque ainda te amo. Queres casar comigo?

DC


Ele tinha chegado ao café adiantado. Tinha escolhido sentar-se na esplanada mas já se estava a arrepender. Tentava sem sucesso chamar a atenção do funcionário do café à vários minutos. A agitação do interior da sala, em contraste com o frio da esplanada quase vazia, só contribuía para aumentar a sua ansiedade. Olhava para o relógio insistentemente, esperando talvez que a sua força de vontade fosse suficiente para acelerar a rotação da terra e com isso traze-la mais rapidamente para perto dele. Agora ela já estava atrasada. Será que não viria? Pensava em tudo o que tinha para lhe dizer e construía as frases perfeitas para a convencer. Imerso nestes pensamentos, sentiu-a antes de a ver. Sentiu o cheiro do seu perfume, ouviu o som inconfundível dos passos dela, adivinhou o calor dos lábios dela. Sentiu receio em virar a cabeça, não fosse a mente dele estar a pregar-lhe partidas e ela não estar mesmo lá.

Ela vira-o já ao longe. Estivera quase para não vir. Via a agitação dele sentado sozinho naquela esplanada gelada e só lhe apetecia fugir. Hesitou, recuou, mas finalmente decidiu-se a ir ter com ele. Sentou-se e deu-lhe um beijo rápido na cara.

Pedi um café para ti mas entretanto ficou gelado. (Como a nossa história, pensou ela). Não faz mal, também não me vou demorar.

Ele tinha tanta coisa para lhe dizer. Lembrou-lhe o dia em que se tinham conhecido e os dias e as noites que se seguiram. Implorou que ela voltasse atrás na decisão de partir.

Era no entanto demasiado tarde. Ela já não o ouvia. Olhava para ele e sentia-se cada vez mais distante. Como é que lhe poderia explicar que quando se conheceram se sentia invisível. Que o tinha usado para recuperar algum amor-próprio. Não era justo para ele, ela sabia. Mas também já era tempo de ele perceber que o mundo não era justo para os fracos e que ele se arriscava a uma vida de desapontamentos se não mudasse. Não gosto de ti (interrompeu-o ela subitamente). Nunca gostei.

As palavras dela apanharam-no desprevenido, abortando todo o discurso tão cuidadosamente ensaiado. Aturdido levantou-se, deu-lhe um beijo na testa e foi embora. Não ia chorar á frente dela. Se tivesse pressentido que era a ultima vez que estaria com ela teria ficado. Teria insistido.

Ao longo dos anos haveria de voltar muitas vezes àquela manhã fria de Janeiro. Umas vezes conseguia que ela ficasse, outras mostrava-lhe todo o ressentimento que tinha guardado para ela. Imaginou-a muitas vezes em muitas mulheres diferentes. Ouviu-lhe a voz em muitas bocas. Os traços do rosto dela foram-se esbatendo e confundido com o tempo. Será que ainda a reconheceria hoje? Ele tinha a certeza que sim.

Pensava nisto enquanto ia dando a comunhão à fila de fiéis naquela manhã de Inverno. O corpo de Cristo repetia ele monocordicamente. Ámen respondeu ela. Sorriu. Não a tinha reconhecido. Talvez fosse melhor assim.

DC

Estás aí? Queria muito falar contigo. Ontem sonhei que me tinhas morrido.

Sonhei que me tinhas morrido e que estávamos no teu funeral. Tu ias sentado em cima do caixão a beber Jack Daniels pela garrafa (logo tu que odeias whisky). Logo atrás de ti seguia uma daquelas bandas de Jazz que vimos em Nova Orleães lembras-te? Atrás da música caótica seguia uma multidão a dançar. Estavam lá os teus pais e a avó Maria. Também lá estava o Simão, lembras-te dele? Já não o vejo há anos, mas continuava igualzinho. A comandar as tropas estava o padre João, com os seus fervores religiosos sempre a lançar cânticos alucinantes como se estivesse a fazer um exorcismo.

E íamos avançando lentamente pelas ruas de uma cidade imaginária. Poderia ser Madrid ou Lisboa. Não me lembro ao certo porque as referências geográficas estavam todas alteradas. Em cada esquina havia um bar de onde saía uma promessa de pecado.

De repente parecia que tudo tinha pegado fogo. O céu ficou vermelho e os edifícios começaram a abrir fendas e a cair.

De repente já não éramos nós, mas sim seres grotescos e deformados que se arrastavam pelos destroços. E tu ias rindo e dançando e bebendo o teu whisky em cima do caixão. Já não eras tu, mas a própria Morte que nos ia hipnotizando.

E continuávamos a dançar, indiferentes ao caos em que tudo se estava a transformar.

Ontem sonhei que me tinhas morrido e que o meu mundo tinha ruído contigo e precisava muito de ouvir a tua voz.

DC

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

MORTE DE DIVA

Nunca levara aquilo muito a sério mas afinal era mesmo verdade. Quando morremos, a vida passa diante nós como um filme. Acomodou-se para assistir mais relaxado à projecção, ignorando o calor húmido do sangue que começava a ensopar a almofada.
Estavam lá todos. O padre que o esconjurara quase à nascença ao sabê-lo gay. Os amigos de infância e adolescência. As tias, de Cascais a Biarritz. Os músicos de jazz do Harlem. Os bêbados do Soho. As noites de glamour da Broadway. Os plateaux.
E os homens, todos os homens. Os miúdos giros a quem nunca soubera resistir. Os actores e modelos que lhe pediam um passaporte para a fama. Os homens de uma noite só. Os que se vestiam de mulher. Todos os homens.
O Anjo Exterminador aproximava-se mais uma vez, implacável. Sentiu o seu pé a apoiar-se na garganta e a pressionar.
Tempo para os créditos finais:
“Obrigada meu Deus por me deixares morrer em Nova Iorque! Obrigada por tudo o que os jornais vão dizer amanhã. Obrigada por ser aos pés de tão belo anjo! Obrigada por esta morte de div...!”

La vergogna

“Ganhou outra vez” – disse-o com a voz sumida, sentindo um aperto no peito.
Precisara de um duplo whisky para fazer a chamada e dizê-lo em voz alta.
Do outro lado da linha um silêncio incómodo. Incrédulo.
Ganhara outra vez.
As sondagens já o haviam anunciado mas ele alimentara uma expectativa semi-religiosa, uma fé numa escolha colectiva pelo melhor candidato, o mais inteligente, o mais bondoso, o mais perfeito.
E em vez disso as massas voltavam a impor um burgesso. O pior candidato. Uma caricatura de líder que continuaria a encher os jornais e a fazê-lo corar de vergonha sempre que falasse em público.
O povo ignorara as vozes dos Homens Sábios: os escritores, os artistas, os catedráticos de todas as áreas, a comunidade internacional. Relevara os escândalos, as falhas de carácter, o ruído...
Ganhara outra vez!
Do outro lado da linha, um silêncio que crescia, cada vez mais desesperado.
Nada mais havia para dizer.
Desligou. E olhou-se ao espelho. O que fazer agora?
Ponderara vários cenários. Emigrar. Mudar de vida. O peso daquela eleição colectiva incomodava-o visceralmente.
Serviu-se de mais um whisky
E bebeu.

SFC
Fev. 2011

A lista

Já passava da hora. André olhava nervosamente o relógio e perguntava-se se ela ainda viria.
À sua volta, nas outras mesas, as pessoas conversavam, indiferentes, entre torradas e meias de leite.
O empregado aproximou-se:
“O que bai ser?”
- Pode ser café.”
“Expresso ou de saco?”.
“De saco, por favor.”
Voltou a olhar a curva da Arcada. Nada ainda. Só as pessoas carregadas de sacos na azáfama de um fim de tarde às compras no centro.
De repente, apareceu. Impecável como sempre. Vestido vermelho, óculos Prada, e uns tacões de andar e meio. Indiferente aos olhares dos reformados que a viam passar em frente ao Viana e sonhavam com os tempos de juventude.
Sentou-se na mesa, decidida.
“Olá padreco! - brincou - Já chegaste há muito?”
André sorriu. “Não. Acabei de chegar”.
Gisela – assim se chamava - foi directa ao assunto, e entregou-lhe uma lista de duas páginas manuscritas.
“Estes são os últimos. Espero que gostes”.
André observou guloso as páginas que ela lhe dava. Páginas carregadas de pecados. O acordo era simples. Gisela relatava as suas experiências, as suas tentações e aventuras. E André, que vivia na redoma do seminário, lia e relia aquelas confissões e ía-se preparando para, no futuro, ouvir e perdoar. Não há estágios profissionais para os homens de fé e arranjara esta forma de ir ganhando experiência no conhecimento da alma alheia, um ensaio de perdão onde André punha à prova o seu pudor e a sua tolerância.
E Gisela, o que ganhava com isso?
Da parte dela o ritual ganhava um misto de contrição e malícia.
Gostava de o ver corar com aquela lista, quase toda inventada, que ela entregava pontualmente todas as semanas. Depois ficavam a falar uns minutos, sobre tudo e sobre nada, a ver fugir o dia.
À hora da despedida, André beijava-a na testa e sussurrava-lhe: “Vai com Deus”. E ela sentia-se em paz.
SFC 26.01.2011