sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011


Porque te amo. Porque ainda te amo. Porque te sonhei muitas vezes antes de te conhecer. Porque ao teu lado os últimos 25 anos passaram num sopro de vento. Porque anseio pelos próximos 25 anos. Porque foste conhecendo os meus defeitos e não fugiste. Porque fazes de mim um homem melhor. Porque és muito melhor do que que eu alguma vez fui. Porque és a minha família. Porque o quero gritar aos quatros ventos. Porque vai haver um dia em que não vão ser precisos porquês. Porque te amo. Porque ainda te amo. Queres casar comigo?

DC


Ele tinha chegado ao café adiantado. Tinha escolhido sentar-se na esplanada mas já se estava a arrepender. Tentava sem sucesso chamar a atenção do funcionário do café à vários minutos. A agitação do interior da sala, em contraste com o frio da esplanada quase vazia, só contribuía para aumentar a sua ansiedade. Olhava para o relógio insistentemente, esperando talvez que a sua força de vontade fosse suficiente para acelerar a rotação da terra e com isso traze-la mais rapidamente para perto dele. Agora ela já estava atrasada. Será que não viria? Pensava em tudo o que tinha para lhe dizer e construía as frases perfeitas para a convencer. Imerso nestes pensamentos, sentiu-a antes de a ver. Sentiu o cheiro do seu perfume, ouviu o som inconfundível dos passos dela, adivinhou o calor dos lábios dela. Sentiu receio em virar a cabeça, não fosse a mente dele estar a pregar-lhe partidas e ela não estar mesmo lá.

Ela vira-o já ao longe. Estivera quase para não vir. Via a agitação dele sentado sozinho naquela esplanada gelada e só lhe apetecia fugir. Hesitou, recuou, mas finalmente decidiu-se a ir ter com ele. Sentou-se e deu-lhe um beijo rápido na cara.

Pedi um café para ti mas entretanto ficou gelado. (Como a nossa história, pensou ela). Não faz mal, também não me vou demorar.

Ele tinha tanta coisa para lhe dizer. Lembrou-lhe o dia em que se tinham conhecido e os dias e as noites que se seguiram. Implorou que ela voltasse atrás na decisão de partir.

Era no entanto demasiado tarde. Ela já não o ouvia. Olhava para ele e sentia-se cada vez mais distante. Como é que lhe poderia explicar que quando se conheceram se sentia invisível. Que o tinha usado para recuperar algum amor-próprio. Não era justo para ele, ela sabia. Mas também já era tempo de ele perceber que o mundo não era justo para os fracos e que ele se arriscava a uma vida de desapontamentos se não mudasse. Não gosto de ti (interrompeu-o ela subitamente). Nunca gostei.

As palavras dela apanharam-no desprevenido, abortando todo o discurso tão cuidadosamente ensaiado. Aturdido levantou-se, deu-lhe um beijo na testa e foi embora. Não ia chorar á frente dela. Se tivesse pressentido que era a ultima vez que estaria com ela teria ficado. Teria insistido.

Ao longo dos anos haveria de voltar muitas vezes àquela manhã fria de Janeiro. Umas vezes conseguia que ela ficasse, outras mostrava-lhe todo o ressentimento que tinha guardado para ela. Imaginou-a muitas vezes em muitas mulheres diferentes. Ouviu-lhe a voz em muitas bocas. Os traços do rosto dela foram-se esbatendo e confundido com o tempo. Será que ainda a reconheceria hoje? Ele tinha a certeza que sim.

Pensava nisto enquanto ia dando a comunhão à fila de fiéis naquela manhã de Inverno. O corpo de Cristo repetia ele monocordicamente. Ámen respondeu ela. Sorriu. Não a tinha reconhecido. Talvez fosse melhor assim.

DC

Estás aí? Queria muito falar contigo. Ontem sonhei que me tinhas morrido.

Sonhei que me tinhas morrido e que estávamos no teu funeral. Tu ias sentado em cima do caixão a beber Jack Daniels pela garrafa (logo tu que odeias whisky). Logo atrás de ti seguia uma daquelas bandas de Jazz que vimos em Nova Orleães lembras-te? Atrás da música caótica seguia uma multidão a dançar. Estavam lá os teus pais e a avó Maria. Também lá estava o Simão, lembras-te dele? Já não o vejo há anos, mas continuava igualzinho. A comandar as tropas estava o padre João, com os seus fervores religiosos sempre a lançar cânticos alucinantes como se estivesse a fazer um exorcismo.

E íamos avançando lentamente pelas ruas de uma cidade imaginária. Poderia ser Madrid ou Lisboa. Não me lembro ao certo porque as referências geográficas estavam todas alteradas. Em cada esquina havia um bar de onde saía uma promessa de pecado.

De repente parecia que tudo tinha pegado fogo. O céu ficou vermelho e os edifícios começaram a abrir fendas e a cair.

De repente já não éramos nós, mas sim seres grotescos e deformados que se arrastavam pelos destroços. E tu ias rindo e dançando e bebendo o teu whisky em cima do caixão. Já não eras tu, mas a própria Morte que nos ia hipnotizando.

E continuávamos a dançar, indiferentes ao caos em que tudo se estava a transformar.

Ontem sonhei que me tinhas morrido e que o meu mundo tinha ruído contigo e precisava muito de ouvir a tua voz.

DC

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

MORTE DE DIVA

Nunca levara aquilo muito a sério mas afinal era mesmo verdade. Quando morremos, a vida passa diante nós como um filme. Acomodou-se para assistir mais relaxado à projecção, ignorando o calor húmido do sangue que começava a ensopar a almofada.
Estavam lá todos. O padre que o esconjurara quase à nascença ao sabê-lo gay. Os amigos de infância e adolescência. As tias, de Cascais a Biarritz. Os músicos de jazz do Harlem. Os bêbados do Soho. As noites de glamour da Broadway. Os plateaux.
E os homens, todos os homens. Os miúdos giros a quem nunca soubera resistir. Os actores e modelos que lhe pediam um passaporte para a fama. Os homens de uma noite só. Os que se vestiam de mulher. Todos os homens.
O Anjo Exterminador aproximava-se mais uma vez, implacável. Sentiu o seu pé a apoiar-se na garganta e a pressionar.
Tempo para os créditos finais:
“Obrigada meu Deus por me deixares morrer em Nova Iorque! Obrigada por tudo o que os jornais vão dizer amanhã. Obrigada por ser aos pés de tão belo anjo! Obrigada por esta morte de div...!”

La vergogna

“Ganhou outra vez” – disse-o com a voz sumida, sentindo um aperto no peito.
Precisara de um duplo whisky para fazer a chamada e dizê-lo em voz alta.
Do outro lado da linha um silêncio incómodo. Incrédulo.
Ganhara outra vez.
As sondagens já o haviam anunciado mas ele alimentara uma expectativa semi-religiosa, uma fé numa escolha colectiva pelo melhor candidato, o mais inteligente, o mais bondoso, o mais perfeito.
E em vez disso as massas voltavam a impor um burgesso. O pior candidato. Uma caricatura de líder que continuaria a encher os jornais e a fazê-lo corar de vergonha sempre que falasse em público.
O povo ignorara as vozes dos Homens Sábios: os escritores, os artistas, os catedráticos de todas as áreas, a comunidade internacional. Relevara os escândalos, as falhas de carácter, o ruído...
Ganhara outra vez!
Do outro lado da linha, um silêncio que crescia, cada vez mais desesperado.
Nada mais havia para dizer.
Desligou. E olhou-se ao espelho. O que fazer agora?
Ponderara vários cenários. Emigrar. Mudar de vida. O peso daquela eleição colectiva incomodava-o visceralmente.
Serviu-se de mais um whisky
E bebeu.

SFC
Fev. 2011

A lista

Já passava da hora. André olhava nervosamente o relógio e perguntava-se se ela ainda viria.
À sua volta, nas outras mesas, as pessoas conversavam, indiferentes, entre torradas e meias de leite.
O empregado aproximou-se:
“O que bai ser?”
- Pode ser café.”
“Expresso ou de saco?”.
“De saco, por favor.”
Voltou a olhar a curva da Arcada. Nada ainda. Só as pessoas carregadas de sacos na azáfama de um fim de tarde às compras no centro.
De repente, apareceu. Impecável como sempre. Vestido vermelho, óculos Prada, e uns tacões de andar e meio. Indiferente aos olhares dos reformados que a viam passar em frente ao Viana e sonhavam com os tempos de juventude.
Sentou-se na mesa, decidida.
“Olá padreco! - brincou - Já chegaste há muito?”
André sorriu. “Não. Acabei de chegar”.
Gisela – assim se chamava - foi directa ao assunto, e entregou-lhe uma lista de duas páginas manuscritas.
“Estes são os últimos. Espero que gostes”.
André observou guloso as páginas que ela lhe dava. Páginas carregadas de pecados. O acordo era simples. Gisela relatava as suas experiências, as suas tentações e aventuras. E André, que vivia na redoma do seminário, lia e relia aquelas confissões e ía-se preparando para, no futuro, ouvir e perdoar. Não há estágios profissionais para os homens de fé e arranjara esta forma de ir ganhando experiência no conhecimento da alma alheia, um ensaio de perdão onde André punha à prova o seu pudor e a sua tolerância.
E Gisela, o que ganhava com isso?
Da parte dela o ritual ganhava um misto de contrição e malícia.
Gostava de o ver corar com aquela lista, quase toda inventada, que ela entregava pontualmente todas as semanas. Depois ficavam a falar uns minutos, sobre tudo e sobre nada, a ver fugir o dia.
À hora da despedida, André beijava-a na testa e sussurrava-lhe: “Vai com Deus”. E ela sentia-se em paz.
SFC 26.01.2011

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Momentos

Senta-se cabisbaixo e desorientado como se não soubesse onde se encontra. Na sua mente desfilam imagens repetidas do seu último encontro com a mulher da sua vida, num segundo reconhecida.
Saber que nunca mais sentiria, debaixo da sua, aquela pele sedosa, húmida dos prazeres partilhados, fazia-o sentir-se perdido, sem rumo, sem amarras.
Encostou-se, perdido, à pedra fria da praia, onde, juntos, viveram momentos indescritíveis. Que fazer? Onde ir? Como adormecer e amanhã abrir os olhos e ter que se erguer?
A dor lancinante sentida trespassa-o como uma lança. O grito preso na garganta não consegue soltar. Estica os braços, pedindo ajuda silenciosa. Ninguém o escuta, ninguém o vê ou sente a sua dor, o seu grito de solidão. Porquê esta angústia, esta desorientação, este bosque sem saída?
Lá longe, distingue aquela que lhe roubou o sossego, caminhando na areia branca e fresca. Será que também não dormiu? Porque tem de ser tão cruel e dura esta sensação de abandono? Que fazer, como se erguer de novo e pensar em recomeçar de novo o dia?

Isabel Costa Pinto

Espera

Encostou o carro na zona escura da rua, protegido pelos prédios de olhares que o pudessem denunciar. Puxou a mortalha e o tabaco, enrolando, de forma lenta, o cigarro. Tempo era aquilo que de momento mais tinha. Espiar este ou aquele era a sua forma de vida.
Do seu local podia observar toda a rua, transeuntes, movimentos e a sua alma que, nesta noite clara e quente, puxava as pessoas para a rua, para o convívio, para a festa.
Pousou o olhar, cansado de tanto descobrir e vasculhar, no café à sua direita cheio de luz, cores vivas, calor. Lá dentro, de momento não muito concorrido, observou os rostos e a vestimenta do casal. Elegantes, bem vestidos, belos no momento, de faces serenas e sorridentes. Adivinhava-se um inicio de noite feito de cumplicidades e partilha. Sairiam para um jantar? Um cinema? Quem sabe, somente um lento passeio ao longo da calçada que envolve o rio calmo e sereno, banhado por um luar intenso, que faz da noite, dia.
O barman fala, de modo caloroso com o homem que, sozinho, se encontra ao balcão. Esperará por alguém? Fará horas para se retirar? Sómente uma bebida para se confortar?
Na sua mente, desenrolam-se imagens de outros momentos.
Acaba o cigarro, em movimentos lentos, lambendo a mortalha, para de seguida, com a mão protegendo o cigarro, dar uma puxada profunda e encher o peito desse prazer tão próprio e de sabor acridoce.
Quanto mais tempo terá de esperar? Começou hoje este novo trabalho mas já está cansado desta vasculhice da vida dos outros. Em casa o espera o seu alicerce físico, mental e emocional. Como anseia ir....
Umas luzes, ao longe se adivinham… Será que é quem espera?....

domingo, 30 de janeiro de 2011

(ainda Munch)

Em modo de piloto automático, já indissociável do tráfego dos fins de tarde nas grandes cidades, dei por mim a sacudir do volante desbotado uns cabelos casposos que gritavam por um tratamento S.O.S. Já seria bom organizar-me e conseguir lavar a cabeça de dois em dois dias, pensei. No leitor de cassetes, a música de sempre, um medley dos anos 80, comentado por spots publicitários de artigos ou serviços já inexistentes, oferta de um ex-namorado que na altura o gravara directamente dum programa duma rádio local. Faltavam 20 minutos para a consulta de rotina, gravemente ameaçada pelo pára-arranca exagerado de um dia chuvoso. Por que será que lhe chamam “molha tolos”, pensei, abandonando de imediato a banalidade da pergunta.

19:49. Foda-se que nunca mais lá chego a horas. Mais vale desistir e adiar a conversa repetida do oncologista sobre o que devo e não devo comer, e que devia mesmo-mesmo deixar de fumar. Sempre arranjo de voltar a sair mais cedo para a próxima consulta, já que vou inventar esta ter sido cancelada por uma daquelas viagens para formação profissional. Daquelas formações de cinco dias que ocorrem na Sardenha e que permitem aos médicos levarem um ou dois acompanhantes. A Dª Conceição arranja-me a declaração na boa e, afinal, ninguém na empresa vai ousar discutir da sua veracidade com uma gaja escanzelada, pálida e semi careca.

Meti-me numa ruela para fugir ao trânsito e estacionei no primeiro buraco que encontrei. Por cinco ou seis minutos não vou pagar parquímetro, sou honesta mas não otária. Deixei o guarda-chuva a pingar no carro e enfiei na cabeça o panamá cinza impermeável. Adivinhava um tombo na calçada escorregadia, pelo que fui caminhando no asfalto da estrada, sujeitando-me a uma buzinadela de quando em quando. Parei cinco segundos em frente a uma pastelaria. Não tinha mesas vagas. Como não me apetecia exibir a minha solidão em pé, prossegui. A fome também não era muita, já se sabe. Mais à frente, embrenhada na tentativa de recuperação da programação das 4ª-feiras na 2, dei por mim a parar em frente a uma montra de um armazém com artigos exclusivamente oriundos da China. Boa, agora chamam-lhes “Supermercado”; foram promovidos. As lojas dos 300, que tanto por nós fizeram, eram só lojas. Estes? Não senhor, são supermercados… Pousada no chão, estava uma réplica plastificada dum quadro do Munch. Eu que nem gostava muito das artes em geral, fiquei a conhecer uns quantos pintores, cujos nomes legendavam as imagens com que os bloggers faziam acompanhar os seus relatos autobiográficos das sessões de quimio ou radio: a Frida Khalo aparecia muito, mas não tanto como o Munch ou mesmo a Rego. Nunca tinha reparado que era a figura feminina que estava na ponta daquela pontezinha; tinha sempre assumido que era o outro vulto que estava prestes a embarcar, deixando-a a ela só naquela praia rochosa. Não sei porquê, mas nunca pensara na hipótese de ser ela a regressar ao lar, ou até mesmo a fugir dele. Tinha-a sempre imaginado como sendo a abandonada. Do gajo que estava em primeiro plano, nunca tivera dúvidas: era um daqueles tarados que perseguiam as mulheres por quem se julgavam perdidamente apaixonados. E tinha definitivamente uma fenda no palato, que o tornava ainda mais tímido e com a mania da perseguição, cada vez que alguém demorava o olhar na sua face por mais que uns breves momentos. Agachei-me para ler o preço na etiqueta amarelecida pelo sol. Só conseguia ler “9,90”, mas faltava lá um dígito, meio escondido por uma outra tela. Custaria 19,90? Porra, 29,90 era estupidamente caro para uma impressão numa tela daquele tamanho, que não ficava bem a acompanhar móvel nenhum, de tão pequena que era. Mas pensando melhor, 20 euros também não era propriamente barato. Com 20 euros não se faz nada, é certo, mas sempre dá para duas diárias e umas bicas.

sábado, 29 de janeiro de 2011

Fim de tarde na ilha.

    Estava naquela altura do dia em que se vê prata diluída no mar. Tudo o que o rodeava tinha o toque de estúdio de cinema, onde reina a perfeição. A natureza tem destas coisas e aquela ilha estava repleta desses cenários.
    Sentado junto às docas, apenas o separava das águas não mais do que três ou quatro passos. Com as suas calças e sapatilhas desgastadas (assim como a sua alma) podia ser facilmente confundido com um pescador. Por dentro, a rede emaranhada que carregava, dava muitos mais nós que qualquer rede de barco de pesca.
    Como era possível que no meio de tanta pureza envolta de magia se pudesse sentir assim? De rastos, sem vontade de continuar… apenas à espera que mais um dia passasse?
    Não adiantava matar o tempo, que era o mesmo que morrer aos poucos. Precisava de ocupar-se: se não o pensamento, pelo menos os seus braços. Foi então que se lembrou que tinha jeito para pintar. Primeiro quis desenhar uma gaivota, mas o modo como ela era livre e levantava voo a seu bel-prazer, não permitia que uma única pincelada ficasse na tela. Quis riscar a tela com traços de raiva, com áreas completamente irregulares. Estragou uma ou duas. Sentiu-se mal. Onde parava aquele gosto, aquele prazer de retratar o que via?
Será que aquela ilha lhe tinha tirado tudo, incluindo a alma? E como a retrataria se se conseguisse ver de fora?
    Voltou no fim da tarde. Voltou àquele lugar onde o tempo parava e onde ele pairava sobre si. Quis ver-se. Quis olhar-se. O dia não tinha sido diferente do anterior, nem tinha absorvido ao milímetro cada minuto. Só sabia que queria estar ali, naquele patamar onde o inconsciente se cruza com a razão. O sol teimou encostar o seu rosto por detrás do arvoredo. A luz do palco, que era o seu fim do dia, apagou. Fechou os olhos e captou a sua própria fotografia. Inspirou por breves momentos. Sentiu a inspiração que já o tinha abandonado há semanas. Nesse instante, soube exactamente o que fazer. Correu para casa. Não viu passadeiras, nem montras. Desta vez não cumprimentou o senhor Rodrigo do bar das docas, nem tão pouco se lembra de ter visto uma viva alma no trajecto. Chegou ofegante à porta número 27 da rua da Assunção. Ainda se inclinou para abrandar a respiração, mas a sua excitação interior não o deixou curvar mais do que 3 ou 4 segundos. Subiu, de um lanço só, os três andares de escadas que o levava até à sua casa. Apenas teve tempo de procurar os acrílicos e os três pincéis que levara quando a sua vida se reduzira a 20kg de bagagem. Não saiu do quarto. Não comeu. Diria até que nem sequer respirou. As suas energias não podiam ser diluídas num sem fim de funções. Precisava de imprimir na tela a fotografia cravada na sua mente momentos atrás.
    Passava pouco mais que dez minutos das quatro horas da manhã. Pousou o pincel. Fechou os frascos. Fechou os olhos. Pensou em ir ao lugar onde se deu o clique, para confirmar cada rocha cravada na mente. Pensou. Repensou. Não voltou a precisar. Só voltaria àquele lugar para contemplar a natureza e sorrir. Finalmente encontrara a sua alma.