sábado, 29 de janeiro de 2011

Fim de tarde na ilha.

    Estava naquela altura do dia em que se vê prata diluída no mar. Tudo o que o rodeava tinha o toque de estúdio de cinema, onde reina a perfeição. A natureza tem destas coisas e aquela ilha estava repleta desses cenários.
    Sentado junto às docas, apenas o separava das águas não mais do que três ou quatro passos. Com as suas calças e sapatilhas desgastadas (assim como a sua alma) podia ser facilmente confundido com um pescador. Por dentro, a rede emaranhada que carregava, dava muitos mais nós que qualquer rede de barco de pesca.
    Como era possível que no meio de tanta pureza envolta de magia se pudesse sentir assim? De rastos, sem vontade de continuar… apenas à espera que mais um dia passasse?
    Não adiantava matar o tempo, que era o mesmo que morrer aos poucos. Precisava de ocupar-se: se não o pensamento, pelo menos os seus braços. Foi então que se lembrou que tinha jeito para pintar. Primeiro quis desenhar uma gaivota, mas o modo como ela era livre e levantava voo a seu bel-prazer, não permitia que uma única pincelada ficasse na tela. Quis riscar a tela com traços de raiva, com áreas completamente irregulares. Estragou uma ou duas. Sentiu-se mal. Onde parava aquele gosto, aquele prazer de retratar o que via?
Será que aquela ilha lhe tinha tirado tudo, incluindo a alma? E como a retrataria se se conseguisse ver de fora?
    Voltou no fim da tarde. Voltou àquele lugar onde o tempo parava e onde ele pairava sobre si. Quis ver-se. Quis olhar-se. O dia não tinha sido diferente do anterior, nem tinha absorvido ao milímetro cada minuto. Só sabia que queria estar ali, naquele patamar onde o inconsciente se cruza com a razão. O sol teimou encostar o seu rosto por detrás do arvoredo. A luz do palco, que era o seu fim do dia, apagou. Fechou os olhos e captou a sua própria fotografia. Inspirou por breves momentos. Sentiu a inspiração que já o tinha abandonado há semanas. Nesse instante, soube exactamente o que fazer. Correu para casa. Não viu passadeiras, nem montras. Desta vez não cumprimentou o senhor Rodrigo do bar das docas, nem tão pouco se lembra de ter visto uma viva alma no trajecto. Chegou ofegante à porta número 27 da rua da Assunção. Ainda se inclinou para abrandar a respiração, mas a sua excitação interior não o deixou curvar mais do que 3 ou 4 segundos. Subiu, de um lanço só, os três andares de escadas que o levava até à sua casa. Apenas teve tempo de procurar os acrílicos e os três pincéis que levara quando a sua vida se reduzira a 20kg de bagagem. Não saiu do quarto. Não comeu. Diria até que nem sequer respirou. As suas energias não podiam ser diluídas num sem fim de funções. Precisava de imprimir na tela a fotografia cravada na sua mente momentos atrás.
    Passava pouco mais que dez minutos das quatro horas da manhã. Pousou o pincel. Fechou os frascos. Fechou os olhos. Pensou em ir ao lugar onde se deu o clique, para confirmar cada rocha cravada na mente. Pensou. Repensou. Não voltou a precisar. Só voltaria àquele lugar para contemplar a natureza e sorrir. Finalmente encontrara a sua alma.

2 comentários:

  1. two funny things: como ler 1 texto é TÃOOO diferente de ouvi-lo; e como 1 mesma imagem espoleta textos tão diferentes, né?

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  2. Podes crer. Estive a ler o teu e senti exactamente o mesmo. O pormenor das horas, por exemplo, passou-me completamente ao lado.

    Vou deixar essas considerações para os comentários dentro do teu texto. :)

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